MENDIGOS DA OSCAR FREIRE


Os Mendigos da Oscar Freire (ou MOF) foram uma banda de vida extremamente curta. Não chegaram a completar um ano. Entretanto, durante os meses em atividade, tiveram uma trajetória bastante movimentada. Foi uma rotina mais turbulenta do que propriamente produtiva, mesmo assim, deixou algo que nos mostra o quão improvável o destino pode ser.

Estamos falando de 1996, entre maio e outubro, um momento em que a cena mundial se redesenhava após o fim do grunge (a partir de 1994, com a morte de Kurt Cobain). Do rock ao heavy metal, novas trincheiras iam repaginando o percurso da música. No Brasil, além de uma geração bem-sucedida (Raimundos, Skank, Planet Hemp, Chico Science & Nação Zumbi, etc.), vivíamos a euforia do apogeu definitivo do Sepultura como potência mundial.

Por conta disso, diversas bandas surgiram no país sonhando fortemente com suas vitórias. Havia um sentimento latejante de esperança e empolgação, seja das que se orgulhavam por usar letras em português, seja das que preferiam o inglês. Se a internet estava muito aquém do que hoje conhecemos, rádios, TVs e revistas ainda formavam um grupo volumoso e determinante.

Essa onda gerou os Mendigos da Oscar Freire – o nome foi uma brincadeira com o fato de a rua Oscar Freire, em São Paulo, ser um ponto da alta sociedade, com lojas caríssimas e pessoas com ar de quem é muito mais superior do que eu e você (só por causa da grana). A banda reunia influências diferentes, mas optou por cantar em português. Acredita-se que o estopim de sua separação se acendeu ainda no início e queimou até o estouro inevitável. Traduzindo, a falta de uma formação estável e a consequente continuidade do trabalho prejudicada.

A maioria dos detalhes de sua biografia é um mistério. Perdeu-se com o tempo. Contudo, sabe-se que três eram as figuras principais: Vitello (vocal), Mandraque (guitarra) e Peppino (bateria). Essa foi a base criativa, o núcleo-motor por trás das composições e de todo o percurso. Houve também um guitarrista chamado Clayton Rosental, que se juntou a eles nos últimos dois meses e conheceu, ao menos, três encarnações diferentes do grupo.

Como todo músico de vinte e poucos anos, eles queriam viver de seu trabalho, fazer turnês e vender discos. Logo no início, gravaram uma demo com quatro músicas, o K7 intitulado 'O Demo'. Na segunda metade dos anos 1990, gravar CD exigia um processo caro. O esquema de praxe ainda era o da fita K7, reproduzida de acordo com o bolso e distribuída nos mais variados cantos em busca das figuras que pudessem levá-la às mãos certas.

Tal material acabou sendo o único "oficial" dos Mendigos. Reza a lenda que carisma eles tinham e que isso facilitou a proliferação de suas músicas na cena alternativa. Um amigo passava para outro, que encaminhava para mais alguém... (durante muito tempo, essa foi a principal ferramenta das bandas de garagem). O rock que eles faziam não estava na grande mídia, apesar de ser orientado por refrãos grudentos. Tinha algo de ressaca grunge com referências clássicas dos anos 1960 e 1970. As composições eram próprias. Quem chegou a ter essa demo diz que havia o seguinte sublinhado na parte de trás da capinha personalizada: "Todas as canções foram feitas pelos MOF".

Na época, o máximo que tive deles foi uma das faixas, gravada numa coletânea (também no K7) com nomes do rock paulistano – todos igual e completamente desconhecidos. 'Pobre Coração' fazia parte de 'O Demo' e, não sei como, resistiu entre as fitas que guardei até hoje – por sorte, havia incluído essa música em outra compilação que fiz para ouvir no walkman (o pai dos mp3 players).

Anos depois, quando eu já estava trabalhando como jornalista, os Mendigos reapareceram. Para ser sincero, levei um tempo até lembrar do que se tratava, quem eram. Jamais imaginaria que aqueles caras tinham tido qualquer tipo de sucesso. Nunca mais havia ouvido falar neles desde a demo. Entretanto, comecei a reparar em uma entrevista aqui e ali (com artistas brasileiros) que surgiam nas influências citadas. Aquilo me deixou bastante encucado. Como pode uma banda que mal existiu ter sido efetivamente relevante? O que de tão especial havia por trás? É o perfeito fenômeno do ninguém-te-viu-mas-todos-gostam-de-você. Provocado, fui atrás dessa história.

Procurando os músicos que havia entrevistado e citaram os MOF, acabei conseguindo o contado do tal Clayton. Cara de pouco papo, foram preciso alguns e-mails até que resolvesse falar. Foi ele quem me contou o que acabei de escrever. Longe da música, disse que nunca mais esteve com qualquer um deles, Mandraque, Peppino ou Vitello. "O Vitello, sei que sumiu de sumir mesmo", destacou. "Meio depois de a banda acabar, ele se meteu nuns negócios de energia, de 'paz e amor', e desapareceu. Devia ser droga. Uma vez, disse que queria ir pra Goiás, num lugar onde faziam contato com OVNIs e tal. Sei lá! Coisa de louco!"

Mas e os outros dois? E como eram os shows? Fale mais, por favor, insisti. "Uma coisa engraçada é a seguinte: eu não gravei a demo, mas fiz todos os únicos três shows dos MOF", revelou. "Não sei exatamente quem gravou as músicas, além deles. Só pra você ter uma ideia, no meu tempo, teve três baixistas diferentes, um tecladista doido e uma mina que fez backing vocal na última apresentação que fizemos. Não tenho ideia de como a banda virou o que virou. Nem sabia que tínhamos virado alguma coisa, tipo influência. Não fizemos nada demais, a não ser uma mísera demo e três showzinhos em botecos de São Paulo".

Coisa de jornalista, à medida em que minha intriga se intensificava, o fascínio aumentava junto. Algo de especial, obviamente, havia. "Bom, aqueles caras tinham atitude", arriscou Clayton. "No segundo show, o Vitello chegou a tretar com um maluco na galera que estava nos vendo. O cara ficava vaiando e gritando umas merdas. Tava bebaço. O Vitello parou de cantar e começou a mandá-lo pros piores lugares que você pode imaginar, inclusive a merda e a puta que pariu [risos]".

Mas só uma demo com quatro músicas não completa show. O que tanto tocavam ao vivo? "A demo e outras músicas que fizemos, além de cover de Thin Lizzy, Led Zeppelin, Collective Soul... essas coisas", continuou. "A banda era legal. Acabou por bobeira mesmo. O Mandraque se encheu e quis fazer hard rock em inglês. Nunca mais falei com ele. O Peppino desencanou geral. Uma vez, o encontrei num shopping... muuuito tempo depois. O cara tava casado, gordo e careca, tinha vendido a bateria e morava no interior do Paraná. Não tinha Orkut, Facebook nem nada. Virou um perfeito tiozinho. Uns tempos atrás, tentei ligar para o celular que ele havia me passado, mas já não existia mais".

Durante as conversas com Clayton, acabei descobrindo que existe uma "última música", a única que ele gravou. A faixa, sem título, nunca viu a luz do dia. "Era um rockão legal com um vocal meio estranho", contou o ex-guitarrista. "Ao invés de cantar, o Vitello meio que lia uma carta de despedida para uma mina que ele teve, sei lá". Você tem essa gravação? – perguntei. "Opa, se tenho! Mas não sei onde está essa fita. Preciso até achar para digitalizá-la".

Além de ser sua história registrada com os MOF, a música marca o fim da banda. "Foi exatamente uma semana antes de tudo ir para o espaço", contou. "Lembro que gravamos num sábado e, no outro, liguei para o Mandraque para saber do ensaio e ele me disse: 'Não vai mais ter ensaio nenhum. Não existe mais Mendigos da Oscar Freire'. Fiquei meio puto, porque tínhamos gravado aquela música para enviar a um festival. Iríamos juntar esse som com a demo pra mandar para a seleção. Estava superempolgado e tal. O pior: os caras nem me falaram nada, que tinham acabado a banda. Não sei bem o que aconteceu. Acho que o Teco, o baixista, disse que ia sair e os eles ficaram putos".

O golpe de misericórdia, na versão de Clayton: "Na real? Esse lance de nunca encontrarmos as pessoas certas desgastava. Tínhamos que ficar ensaiando tudo de novo com quem entrava. Ou seja, nunca saíamos da estaca zero. Acho que isso deixou os três de saco cheio. Foi nessa época que o Vitello veio com esse papo de OVNI. Aliás, ele queria desencanar do festival para ir numa 'reunião' de um povo com quem tinha contato lá em Goiás – dessa doideira toda. O Mandraque e o Peppino ficaram putos. Me parece que o Mandraque já estava armando a banda de hard rock em inglês nessa época e preferiu mandar o MOF à merda e seguir adiante. O Peppino? Bom, ele era sossegado e foi terminar a faculdade".

Os Mendigos da Oscar Freire deixaram sua marca, mesmo que mínima. Ídolos sem rosto, foram anônimos como qualquer rato de esgoto, mas inesquecíveis como a noite mais importante da sua vida. E o principal: deixaram a lição de que perseguir o sucesso a todo custo não precisa significar abrir as pernas. Porque isso não depende só de você, mas do que o destino escolheu. Sorte, meu chapa, é uma roleta russa.

Henrique Inglez de Souza

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