DOCE DE JARACATIÁ BLUES

Robert Johnson

O calendário de shows no Brasil não segue um rigor específico, tal qual a Europa, que reserva o meio do ano – período do verão deles – para receber inúmeros festivais e turnês. Aqui, em geral, vai de acordo com as agendas das atrações. Já cobri um festival de blues no interior de São Paulo que aconteceu a uma semana do Carnaval. Mesmo assim, teve público e rendeu boas performances. Voltei para casa com lembranças agradáveis de lá.

Até vale dedicar umas linhas sobre o evento, pois o salto positivo não esteve apenas por conta da noitada em cima do palco. Também teve a ver a experiência gastronômica completamente inusitada que tive. Posso dizer que vivi uma espécie de reencontro não combinado com o passado.

Eu estava nos camarins, apreciando a visão da típica bagunça organizada de músicos se aquecendo, outros conversando e produtores e jornalistas circulando por toda parte. O local era um clube e ali me parecia ser um salão de jogos improvisado para receber nossa muvuca. Não se tratava de uma programação com grandes astros, mas havia preocupação com o profissionalismo.

Além de cases empilhados, cabos, amplificadores e peças de figurino, víamos uma mesa forrada de quitutes e bebes dos mais variados – como acontece em qualquer show que se preze. Por ser blues, é claro que não poderiam faltar as garrafas de whiskey – clichê do assunto. Um conhecido, com quem conversava sobre a homenagem que logo faria a Robert Johnson, me ofereceu: "vamo num whisquinho aí?". Mas não aceitei. Estava mesmo com fome.

Dei uma olhada detalhada pela mesa à procura de algo para beliscar. Encontrei uma tigela que, ao contrário do whiskey, causava estranheza por estar ali. Parecia daqueles doces que comemos aos domingos, depois de um farto almoço na casa da avó. Não resisti e conferi o que era. Nem me toquei que havia uma etiqueta identificando a gororoba. Coloquei um pouco em um copinho descartável e meti a colher.

Até hoje fico tentando imaginar a expressão que fiz depois do primeiro bocado. Lembro de ter sido um misto de surpresa e susto. Aquilo era doce de jaracatiá! Mas que raios fazia em um festival de blues? Ninguém soube me responder. Sem pensar nem meia vez, enchi o copinho e fugi para um canto qualquer. As apresentações ainda estavam no início e não eram 20 minutos de deleite que fariam a diferença em minha cobertura.

Aquela surpresa merecia um tempo exclusivo, afinal, era doce de jaracatiá! Cresci ouvindo histórias diversas sobre essa sobremesa, e sempre passando vontade de provar. Em casa, na minha infância e adolescência, tinha status de iguaria extremamente luxuosa. Aparecia muito de vez em quando e só os mais velhos podiam se esbaldar. Raramente sobrava um teco. As conversas que rolavam tentavam desvendar receitas exclusivas e misteriosas. Houve até briga entre umas primas velhas por causa de promessas não cumpridas de repassar tal "segredo". O papo que mais saía nas reuniões familiares é que um único senhor que morava em São Pedro (SP) sabia preparar a gororoba mágica. Para dificultar, era algo passado de pai para filho.

Nunca fui fã de doces, mas acho que todo esse contexto criou uma cisma em mim, um interesse incondicional. Quando finalmente pude provar, entendi o porquê de tanta história. O treco era realmente bom e dava vontade de comer sem parar. Hoje, entretanto, sei que não há nada demais, a não ser que são pouquíssimos lugares onde se produz. O jaracatiá (ou mamão-do-mato) pertence à família do mamoeiro e ocorre nas regiões Centro-Sul do Brasil. A árvore é alta e o fruto maduro é um tanto hostil, pois guarda um leite que pode nos queimar quando consumido 'in natura'.

Justamente por conta da produção do doce, quase já não existe mais pés de jaracatiá – que leva cerca de 5 anos para frutificar. Isso explica o fato de ser tão específico e haver esse status de luxo. Por isso, quando me deparei com aquela tigela nos camarins do festival, avancei no ato. E estava saboroso, o que me levou a resgatar as mais ternas e remotas lembranças. Tal qual som, imagem e perfume, os sabores são um meio incrível de viajarmos pelo tempo.

Depois da última colherada, vieram aqueles cinco minutos de contemplação e fim de viagem. Ao fundo, ouvia meu conhecido no palco, mandando ver sua homenagem ao Robert Johnson – acho que tocava 'Ramblin' on my Mind'. Sem perceber, e perdido em meus pensamentos, já estava associando o mestre blueseiro ao doce de jaracatiá. As lendas e sua biografia sempre criaram um contexto, para mim, sedutor e intrigante.

Blues não é o meu estilo predileto, mas gosto muito de alguns de seus personagens principais. Entretanto, este pioneiro me intriga e exerce um fascínio fora de série. Foi um sujeito que viveu apenas 27 anos e percorreu uma breve carreira de nove anos, aproximadamente. Construiu uma obra restrita, porém amplamente venerada, procurada e, por que não, devorada. Provavelmente, muitos nomes que você gosta admiram esse cara – Rolling Stones, Eric Clapton, Red Hot Chili Peppers e White Stripes já fizeram versões para suas canções, por exemplo.

Nascido no Mississippi (EUA) de 8 de maio de 1911, Robert Johnson iniciou sua trajetória aos 18 anos. Compunha, cantava e tocava violão de maneira peculiar e marcante. Tinha uma sensibilidade absurda para conduzir melodias. Deixou 41 registros das 29 músicas que escreveu (13 composições tiveram dois takes). As únicas vezes em que esteve em um estúdio de gravação aconteceram em novembro de 1936 (San Antonio, Texas/EUA) e junho de 1937 (Dallas, Texas/EUA).

A história ganhou ainda mais contorno graças aos mitos que pairam sobre a imagem do bluesman. Dizem que, para conseguir destreza ao violão, ele teria vendido sua alma ao diabo. Levou seu instrumento a uma encruzilhada quando os relógios marcavam meia-noite. Lá, o que seria a figura do capeta afinou as cordas e executou algumas músicas. Depois, o devolveu a Johnson, que, a partir de então, ganhou a habilidade com a qual se consagraria. A versão do "pacto" ganhou popularidade por causa das letras de canções como 'Cross Road Blues', 'Me and the Devil Blues' e 'Hellhound on My Trail'.

Uma das principais referências do chamado Delta blues, Robert Johnson morreu no dia 16 de agosto de 1938. Não resistiu às complicações decorrentes de um envenenamento ocasionado por um trago de whiskey "batizado". Até hoje não se sabe o que teria feito alguém querer matá-lo. Há quem acredite que ele andou mexendo com mulher casada e acabou pagando com a própria vida, três dias depois do gole errado. O local onde seu corpo está enterrado permanece desconhecido, embora haja, ao menos, três supostos pontos. Em um deles, pode-se ler: "Descansando no blues".

Essas lacunas nos acontecimentos os tornam um mistério sem fim. Isso me amarra com força ao bluesman e deixa sua obra tentadora. É mais ou menos assim com o doce de jaracatiá e o que cresci ouvindo a respeito. São coisas que carregamos como "fraquezas" (no bom sentido). Ou seja, tudo aquilo que, por alguma razão, povoa nosso imaginário proporcionando sensações diversas – saudade, prazer, inspiração, conforto, alegria, relaxamento...

De volta ao festival... Notei que o meu conhecido estava no palco e tocava o clássico 'Stop Breaking Down'. A plateia paralisou diante da homenagem. Chegava a hora de me reconectar à realidade e cumprir o meu dever. Antes de deixar os camarins, porém, me virei mirando a tigela com doce de jaracatiá. Foi de forma instintiva, feito uma despedida. Só pensei: "Caramba, como valeu a pena ter vindo!"


Henrique Inglez de Souza

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