A GENTE SOMOS INÚTIL

É incrível como os anos passam e só aumenta a impressão de vivermos em uma latrina porcamente recheada e a céu aberto. Pode me chamar de pessimista, mas é o que o cotidiano me diz. Ligue a TV ou o rádio; veja os destaques na internet e esse monte de bosta que vira modinha no Facebook. Há coisas boas? Lógico que sim, e é por isso que fico puto. O que tem qualidade fica à mercê de uma brechinha qualquer.

O meu porteiro estava comemorando a vitória do time dele quando cheguei no prédio em que moro. Quando passei pela guarita, ele mandou: "Ganhamos mais uma, porra! Agora, tamos que nem o 'fulano' [não fiz questão de decorar o nome] do Big Brother: a gente somos líder!" Dei um sorriso ensaiado e virei as costas. Enquanto pegava o elevador, fiquei mastigando na cabeça aquilo que ouvira. Era o cúmulo do cúmulo da cretinice. É triste ver como estamos longe de um ideal razoavelmente satisfatório de cultura popular.

O curioso foi a frase orgulhosa do porteiro, "a gente somos líder". Me lembrou na hora o refrão de 'Inútil', do Ultraje a Rigor, e me fez ver o quão feliz Roger se saiu quando compôs essa pérola. Logo que entrei em casa, corri ligar o som e colocar para ouvir em alto e bom som: "Inútil, a gente somos inútil".

Das canções que mais marcaram o rock nacional nos anos 1980, 'Inútil' é uma delas. Melodia simples, riff grudento e letra de tom bem-humorado para tecer críticas precisas (a fórmula, aliás, do Ultraje a Rigor). Foi lançada originalmente no final de 1983 como carro-chefe do compacto 'Inútil/Mim Quer Tocar' e se tornou um sucesso quase instantâneo. Chegou a ser usada na campanha política 'Diretas Já' (1983-1984) – pró-eleições diretas no Brasil do final da Ditadura Militar.

O refrão certeiro do "inútil, a gente somos inútil" nada mais é que a máxima do retrato que ilustra nosso país até hoje. Surgiu sem querer, durante um inspirado banho, Roger começou a cantarolar algo como "why don't you". A ideia era encontrar uma palavra ou frase que melhor se encaixasse nisso, e daí saiu: "don't ya... nnnútia... inútil".

Aproveitar o adjetivo inútil tinha grande potencial, pois era justamente o resumo de tudo em que ele estava pensando. Na época, o Leôspa (baterista) havia comentado sobre um cara com quem estava trabalhando que falava "a gente vamo", "a gente somos". Aquilo soou uma deixa mais que perfeita para que a letra ganhasse forma e vida.

A música foi gravada em abril de 1983, no estúdio Audio Patrulha (São Paulo), sob a produção de Pena Schmidt. Na mesma sessão, ganharam registros 'Mim Quer Tocar' e 'Ricota'. A banda era composta por Roger Rocha Moreira (voz, guitarra-base), Maurício Rodrigues (baixo), Leôspa (bateria) e Edgard Scandurra (guitarra-solo e vocal principal em 'Ricota'), que fazia parte do time e que compôs aquele famoso riff da canção.

A versão que saiu no álbum 'Nós Vamos Invadir Sua Praia' (1985), a mais conhecida, é uma regravação, já com Carlo Bartolini no lugar de Scandurra. Embora tenha mais "corpo" e melhor qualidade de gravação, o espírito "inútil" permaneceu intocado – inclusive no solo, cuja, digamos, esquálida construção do fraseado acabou sendo copiada a pedido de Roger.

No final das contas, tivemos um dos primeiros grandes hits e, em pouco tempo, clássicos do rock nacional dos anos 1980. E o mais legal é que, se você colocar essa música para tocar agora, não achará em NADA desatualizada.

Henrique Inglez de Souza

Comentários

  1. Um outro problema é que; nestes tempos efêmeros da atualidade, em que não há tempo para nada (e não se faz nada), já está virando clichê barato (pela maioria) falar de como os tempos anteriores eram bons, de como a música tinha um outro sentido (na verdade é que tinha um sentido), de como as pessoas eram diferentes etc... Isto é o que acho mais 'triste' na situação, porque muito se fala, pouco se faz...
    O outro gume da faca é o dinheiro...
    Quanto mais se faz as coisas para tê-lo, mais se perde em qualidade, responsabilidade, motivos, sentidos... "Quanto pior, melhor"
    E parabéns pelo trabalho,
    É um ótimo texto!

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    1. Muito legal o seu comentário, Diego! Valeu! Gostei, pois também é algo que acho uma das grandes chatices da modernidade: essa coisa de uma nostalgia piegas e interesseira. Isso que você comentou é perfeitamente sentido, por exemplo, nos shows de nomes consagrados e seus abusivos altos preços de ingressos, ou então naquele orgulho besta que o Rock in Rio prega: "Eu Vou", "Eu Fui". É usando isso que a maioria dos que estão à frente da grandde mídia aproveita pra ganhar mais com 'produtos' cada vez piores. É tudo uma questão de se educar a massa. Lá atrás foi 'ensinado' que porcaria é bom, então, é isso o que a massa consome hoje em dia. Já pensou se esse mesmo investimento midiático fosse feito com gente que vale a pena? Seria outra a realidade cultural, né mesmo?
      Valeu pelo comentário e pelo elogio!
      Grande abraço!

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