A DIFERENÇA ENTRE O DEUS E O REI

O jornalismo é uma profissão que te exige criatividade, persistência e faro. Outras características também, mas acho que essas são a chave para algo bem-sucedido. Na área da música, viram as ferramentas daqueles que sabem que os caminhos ditos oficiais não representam a etapa única e final em uma futura pauta. Afinal, existe muita preguiça, má vontade e incompetência de assessorias e empresários, e, se o jornalista não tiver aquele perfil, provavelmente irá se conformar com a primeira resposta do primeiro canal que procurou – normalmente negativa.

Todas as minhas principais entrevistas foram resultado de ir além, de vasculhar o improvável e fugir do padrão. Agora, é verdade que nem sempre dá certo nossa "luta" e somos obrigados a nos contentar em ficar só na vontade. Um recente exemplo que tive foi o Eric Clapton. Tentei de todos os jeitos e nada. Insucesso? Sim, faz parte, e olha que cheguei a conversar com as últimas pessoas antes da figura mais importante dessa hierarquia, que, claro, é o próprio astro.

Considerando a tremenda dificuldade que foi e a distância enorme até o topo desse Olimpo, até que o apelido de deus da guitarra cai bem a ele. Não gosto desses rótulos (ou melhor, avatares). No fundo, têm muito mais utilidade para o marketing do que para a arte feita. É justamente na imagem que se cria para vender um artista que está a morada dos altos preços de ingressos e de produtos (CDs, DVDs, camisetas, etc.), além de lhe ser a oportunidade tentadora para se tornar uma celebridade.

Infelizmente, hoje em dia está em alta a valorização do fútil e do achar ser comestível (e saboroso) o lado podre da maçã. O sucesso costuma trazer fama, o que é incrível. Contudo, muitos dos que se tornam famosos acabam se deixando levar para o perigoso lado das celebridades. Esse lado é aquele em que pouco importa o que está sendo produzindo, você é o "deus da guitarra", o "fenômeno", o "pai do rock" ou "a maior banda de todos os tempos" e ponto. Enfim, famoso por ser famoso, sabe? A partir daí, ser antipático, esnobe, "xarope" e cheio de não-me-toques é a coisa mais fácil.

Em uma de minhas últimas investidas por um papo, mínimo que fosse, com Clapton, insisti com sua assessora, explicando o porquê da pauta e tudo mais (seria para completar a matéria de capa da Guitar Player). Ela, então, me disparou que não se insiste a Eric Clapton fazer qualquer coisa. Foi a sentença final de que o papo com o deus da guitarra, definitivamente, não sairia da vontade. Sei lá, deve ter soado ofensivo um jornalista de um país que ele visita uma vez por década querer entrevistá-lo. "Será que proferi uma blasfêmia???", pensei preocupado. "Nahh, nada disso! Bobagem! O cara é avesso mesmo", meu juízo me corrigiu logo em seguida.

Isso me levou a refletir o poder do marketing a partir de apelidos como o do guitarrista britânico. O apelo é tamanho que, no dia do show, qualquer piscada ou coçada de nariz que o Clapton desse era ovacionada como algo genial. É claro que havia quem, assim como eu, estava atento à alta qualidade daquele músico histórico que estava no palco – e houve momentos memoráveis. Mas havia um povo histérico simplesmente por estar diante de uma figura famosa. "Meu, o cara é o deus da guitarra!!", exclamou eufórico ao amigo um fã que estava próximo a mim. Eis aí uma ilustração perfeita do que estou dizendo: a mera reprodução de um conceito supervalorizado, fantástico, em que a música e o conteúdo são coadjuvantes.

Eu seria um imbecil se achasse que o Eric Clapton não é um guitarrista fora de série e dono de um talento único. Ele, por sinal, é um de meus favoritos, e foi um dos que me ensinaram a apreciar o bom gosto ao invés do exibicionismo vazio nas performances. Por outro lado, sei separar o que é humano, o que é um dom, daquilo que é pré-fabricado, artificial, feito para ser vendido em escalas recordes. Nunca fui de endeusar músico porque acho que é o que ajuda a "estragá-lo".

No momento em que ouvi aquele fã extravasar sua empolgação pensei na luta sem sucesso que foi tentar falar com o responsável por clássicos como 'Layla' e 'Bad Love'. Não pude deixar de lembrar quando outra sumidade da guitarra veio ao Brasil, o B.B. King. O velho bluesman também tem seu apelido – o rei do blues –, mas, nesse caso, faz sentido, já que "king" significa rei. A diferença é que ele, mesmo no alto de seus 84 anos (na época - 2010), me pareceu não ter embarcado rumo ao mundo das celebridades. Depois do show (que fez sentado por causa da idade), teve saco de receber com um sorriso doce no rosto um grupo razoável de fãs à beira do palco e, mais tarde, no camarim. Trocou ideias, tirou fotos e deu autógrafos.

Eu tive a honra de cumprimentá-lo e, no dia seguinte, entrevistá-lo por telefone. Cansado, mas simpático, B.B. King fez o seu papel e permitiu que a relação artista-mídia-público fluísse do jeito esperado: sem distância, sem silêncio, sem blasfêmia. Estranho, mas, ao invés do deus, foi o rei quem me abençoou um trabalho. E é esse tipo de coisa que nos faz valer todo o empenho dedicado à base de criatividade, persistência e faro (em tempo: a primeira resposta que tive quando pedi entrevista com este bluesman foi um seco e decorado "não dará entrevistas").

De eterno mesmo, a vida tem o aprendizado. Sempre podemos aprender ou rever visões, conceitos e comportamentos. Nesse processo, ficamos mais exigentes ou tolerantes com o mundo, o que nos permite a adaptação consciente. Graças a isso, no caso dos jornalistas, encontramos meios e maneiras de conseguir uma pauta importante. Agora, se não der certo, paciência! Enquanto houver a possibilidade, é só tentar de novo e de novo e de novo... Numa dessas, quem sabe, vai que o deus da guitarra acabe aprendendo com o rei do blues o que significa ter atitudes divinas com o mundo em que transita e eu consiga entrevistá-lo. Será?


Henrique Inglez de Souza


P.S.: Se quiser saber sobre a "experiência" B.B. King, eu escrevi a respeito há algum tempo. Clique aqui para ler.

Comentários

  1. Gostei pra caramba do seu blog e dos textos Henrique. Abraços

    Gustavo.

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  2. Valeu, Gustavo! Está convidado a sempre voltar!
    Abraço!

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