O QUE INSPIRAM AS ORELHAS?

Eu li recentemente o livro da Paula Febbe, 'Relato Inspirado por Orelhas' (2010). É uma obra curta e de rápida leitura. São capítulos pequenos (alguns deles lembram poemas na linha, digamos, modernista e pós-modernista) para contar uma história bem atribulada. O discurso, de um modo geral, sugere algo que lembra de raspão autores como Augusto dos Anjos ou Charles Bukowski – sem, claro, aquela espontaneidade e o enfoque bem-sacado desses mestres. A ideia parece ser expor as vísceras de uma carcaça que se decompõe ao longo das páginas.

Não que a autora fale do corpo de um cachorro morto que tenha encontrado pelo caminho. Ela conta a trajetória de uma personagem que vive em um ambiente nada saudável, ou que, pelo menos, passa longe daquelas famílias de propaganda de margarina que vemos na TV. As análises por traz das palavras são constantes, o que, às vezes, esbarra no inevitável desnecessário (ou elucubração de ziguezague) – mas sem problema! Para isso, existe o tempo como santa ferramenta de lapidação da escrita e da criação.

Ainda sobre a personagem, a imagem mais predominante é a de alguém sem a menor cerimônia para deixar extravasar sua birra de garota mimada que não aceita nada que vá contra suas vontades. Apesar das intempéries vividas, mostra-se uma criatura malresolvida (nada está bom), sofredora, complexada e de saco-cheio com a vida. Eu diria ser uma pessimista sistemática. Depois de algumas páginas, o clima do relato é tenso e sem boas perspectivas. Dá a impressão de que o mundo está engolindo aos poucos a protagonista e tudo à sua volta. Final feliz? Esqueça! O que me conforta é saber (supor) que foi exatamente essa a intenção da Paula Febbe.

Chocar, o livro não choca, mas incomoda, e só por isso eu já ficaria satisfeito como autor. Afinal, boa ou ruim, uma obra que não te desperta absolutamente nada é um fracasso nato. E 'Relato Inspirado por Orelhas' tem umas passagens interessantes, como as que estão nas páginas 24 e 66. A informação desses trechos ficou perfeitamente sintetizada em uma espécie de poema descritivo do avô (primeiro caso) e do derrame do pai (segundo) da personagem. São coisas como essas que me prenderam à leitura e me fizeram caminhar até o final do livro.

O porquê desse título, no que, de fato, inspiraram as orelhas, somente a Paula Febbe poderá explicar. Contudo, gosto de viajar nesse tipo de coisa – o que, ao meu ver, é perfeitamente normal e esperado. Antes de começar a ler, pensei que tivesse relação a puxões de orelha no sentido figurado. Quando cheguei à página 116, a derradeira, notei que continuava com a mesma suposição, mas reforçada com a ideia de também ser tudo aquilo que ouvimos sem necessariamente querer e que, de alguma forma, nos fica impregnado na memória (mas, aí, não são orelhas. São ouvidos!). Muita viagem... É melhor parar por aqui.

Henrique Inglez de Souza

Quem quiser conhecer a Paula Febbe, que é um doce de pessoa, acesse: www.paulafebbe.com

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